domingo, 16 de janeiro de 2011

Inquietação

É incrível, porque, absorvidos pela selva de pedra, estamos expostos às piores realidades, todos os dias, quase não há como fugir. Já não ligo mais a televisão, leio pouco os jornais. O sensacionalismo midiático achou sua mina de ouro na desgraça, na barbárie, na loucura. As mais infames patologias humanas viraram atração, fazem mais sucesso do que música, teatro, literatura, divertem mais do que circo. E não há fuga, porque se passo adiante das páginas policiais e mantenho a televisão desligada, as misérias me alcançam porque enchem todas as bocas, que alardeiam a podridão e se calam depois, em figuras patéticas de queixos caídos e olhos pasmos.
E quando não é o culto à tragédia, é o vazio. Acho que o vazio me exaspera ainda mais. O completo vazio das massas. Do que são feitas as pessoas, afinal? De matéria e mais nada? Não! Existe uma alma que sustenta o peso destes corpos que vagam na futilidade, na banalização, na ignorância. E não falo nem do extravio da própria matéria, que é fêmera; falo antes da desatenção à alma perene, que, por diáfana e leve, é esquecida. 
Eu realmente ando sentindo uma inquietação crescente, que me faz questionar muitas coisas, a todo momento, sobretudo a postura das pessoas. Me incomoda observar o estilo de vida superficial que se espalha pra todas as direções. Fico um tanto quanto exasperada e desiludida quando presto atenção aos assuntos em voga e quando vejo a que tipo de coisa as pessoas estão dedicando seu tempo, sua energia. A “vaziez” me desespera. Me desespera também não ter com quem falar sobre isso, não encontrar pessoas dispostas a debater, a trocar idéias, experiências. A inquietação da alma e da mente aumenta a cada dia, pois está reprimida a vácuo, sem encontrar uma fenda por onde sair.
Mas antes de perder completamente o norte e cair na arapuca da descrença absoluta, eu tento dar mais atenção aos detalhes, às coisas que nunca viram manchete nos jornais e na TV. E é justo nas diminutas coisas que eu encontro forças pra crer, crer, jamais deixar de crer. Pequenas bondades me consolam. A arte me consola. Encontrar pessoas com humanidade e inteligência emocional afaga meu coração inquieto. Me comove a extrema sensibilidade inerente à música, à pintura, à literatura, extensões da sensibilidade do homem.
E em minha crença irracional, que vai contra o bombardeio alucinado de desgraças e misérias, continuo reforçando e alimentando a esperança de que o homem, usando a inteligência que lhe foi conferida, vai reencontrar o caminho certo e reabilitar-se a tempo de salvar a humanidade do caos absoluto.
Tem aquela frase "todo mundo é parecido quando sente dor". Quando causa dor também.

Sabe, eu tenho uma relação bem forte com as palavras. E se tem uma coisa que não concebo é ver gente usando a palavra com a especialidade de ferir. Ferir, gratuitamente, machucar, partilhar as suas misérias. Entendo quando isso é feito como mera defesa, entendo o excesso, a explosão, eu os tenho demais, entendo e respeito a dor, o incômodo... E no fundo, é quase sempre defesa mesmo. Mas há TAMBÉM a mera crueldade, o prazer mórbido de inferiorizar (bem presente na faculdade) o outro para sentir-se um tantinho a mais com razão, um tantinho menos inferior. Há a insistência na desqualificação, na ironia doentia dada pela arrogância, na falsidade, para ter razão no grito.

Então, a gente tem nas palavras armas brancas. Você pode manchar o dia de uma pessoa com uma frase envenenada. Manchar uma fase. Uma vida.

Eu questionava uma pessoa querida sobre o exercício de superação dos estragos das palavras ferinas. "Vc precisa ver isso sob outra ótica", dizia ele. Então a responsabilidade de mudar os fatos é SEMPRE de quem é ferido? E no que tange às armas de fogo, cujos estragos realmente decidem uma vida? Há essa diferença?

É foda, ele tá certo: pra construir tolerância é preciso tolerância até com quem nos fere. E a gente só pode mudar a si. Mas, poxa, que fardo! Isso cansa, magoa. Depois até liberta, mas cada um tem seu tempo pra entender e perdoar.

A crueldade que estraga um dia com prazer, usando uma frase pra mim é da mesma natureza da crueldade que atira. São maldades proporcionais ao desajuste do nosso superego.

Então, a gente se pergunta: meu Deus, onde o mundo vai parar? Mas deixamos de olhar para as pequenas crueldades que cometemos no dia a dia, para acobertar a nossa necessidade de auto-afirmação a qualquer custo, e que alimentam e legitimam contextualmente essa maldade toda que vemos por aí.

Somos, microcosmicamente, todo esse mundo aí que condenamos.
E somos a redenção também, quando fazemos tolerância.  

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